Resenha sobre o filme “O Menino do Pijama Listrado”
Leonardo de O. Schneider¹
O filme “O Menino do Pijama Listrado” (2008), adaptado do livro de origem (Boyne, 2006) em direção fílmica por Mark Herman, teve seu lançamento já há algum tempo e ainda carrega consigo um peso emocional de notoriedade, porém, com algumas ressalvas deste novo momento de ‘(re)espectação’ em que vivemos, que faz da obra merecedora de novas análises e resenhas como esta que escrevo, sob nova perspectiva espectadora/leitora num mundo já bastante mudado e muitas das vezes crítico o bastante para ser considerado demasiado “chato”. Infere-se a isso ainda, como abordarei, que análises distintas se fazem possíveis, pois mudam-se os pontos-de-vista — afinal, assim funciona a interpretação acerca do que em matéria remete à arte de maneira geral, podendo-se dizer inclusive que é bem possível que a intenção autora morra no exato momento em que se transponha a figura humana, real, à idealizada e ficcional personagem autora no mundo criado. Entretanto, tenhamos calma e deixemos as problematizações para posteriori.
Abordando a alemanha nazista em periodo não especificado, a narrativa é construida sob a perspectiva do jovem Bruno, interpretado pelo hoje adulto Asa Butterfield, imergido em sua própria inocência — típica das crianças comumente retratadas em obras audiovisuais, tanto é que, quando são representadas de maneira dedicadamente maldosa, consideramos transtornos e condições semelhantes à sociopatia como justificativa; i.e., temos dificuldade de aceitar maldade vinda de crianças, o que cabe também a tal obra. Vinculado a isso, ao iniciar do longa, contextualizando a perspectiva do garoto, vemos que sua familia genitora é constituida por uma relação que nos dias atuais seria suficientemente contestável e justificadamente odiável: pelo ‘amor’ que enlaça um pai nazista a uma mãe ideologicamente abstêmia.
Da parte do pai, entretanto, nos deparamos com um avô declaradamente alinhado à ideologia nacionalista racista amplamente defendida e aplicada pelo, à época, lider absolutista mais abominável na cronológica existência humana na Terra: Adolf HItler. Por outro lado, da esposa do avô, mãe do soldado nazista Ralf (David Thewlis), o qual é pai de Bruno, vê-se um perfil rebeldemente contrário à política detestável a que seu filho está inserido como agente e disseminador — não só isso, mas mais odiável por ser ‘diretor’ de uma das que o filho pensa em trrama serem fazendas às quais pessoas de pijamas listrados espontaneamente adentram para trabalhar em suas respectivas funções. Da parte da mãe do garoto e de sua família, entretanto, pouco se sabe e não parece ser por acaso: a narrativa dá pouca importância às relações que não estejam expressamente ‘fronteadas’ aos olhos do garoto; tudo o que vemos é o que ele vê e, a partir desse fato, entramos em conflitos notórios em interpretação sobre momentos entregues a excessos de ingenuidade que muito bem poderiam ser concebidos como predisposição à maldade, principalmente determinada pela má influência do ambiente e por ideologia fanática de seu pai — a mãe, ao que parece, não escapa do rótulo da maldade, afinal, é adulta demais para estar mascarada como ingênua, tanto é que, quando descobrimos que ela não tinha sequer ideia de que os judeus eram mortos, soa-se como um artifício forçado de roteiro. Por outro lado, a partir dessa introdutória representação dada pelos olhos ingênuos de Bruno, entendo ser possível supor que Elsa (Vera Farmiga) é, sim, distante de seus parentes e estes não poderiam, por decisão única do recorte narrativo, estar presentes em nenhum dos atos e planos desenvolvidos no decorrer do filme.
Contudo, a história se catalisa em trama, mesmo, a partir de um fato específico: dada a promoção de Ralf a diretor da ‘fazenda’, foi preciso que a família se mudasse, para fins de gerenciamento e acompanhamento direto de sua parte. Assim, Bruno, a irmã Gretel (Amber Beattie) e a mãe Elsa, tiveram de deixar tudo para trás e se mudar, junto de Ralf, para uma casa imensa ao lado da fazenda, imersos no que provavelmente seria o luxo da época — com direito a motorista particular e supervisão da guarda alemã. Na adaptação à nova residência representada em tela, importa notarmos que Bruno chega a conhecer alguns dos ‘trabalhadores’, que vez ou outra frequentam sua casa para exercer funções domésticas e que o garoto parece ter caído de paraquedas numa alemanha propagandista e declaradamente antissemita — o que nos leva a dùvida: seria ele ingenuo demais, alienado ou também abstêmio?
Disso, os fatos da narrativa em espectação vão se sequenciando e sobrepondo: Bruno, com seu comportamento infantil, porém explorador, passa a ser curioso sobre o novo mundo em que habita; percebe a irmã cada vez mais adolescente entrando para um fã clube esquisito que venera símbolos estranhos estampados em pôsteres hipertextualizados pela figura de um homem de bigode curto abaixo do nariz e quase sempre descabelado num púlpito que, em ângulo específico, o deixa em posição heroica; percebe, igualmente, a preocupação excessiva da mãe com o novo contexto em que o filho vive, as estranhas movimentações militares ao seu entorno e um pai cada vez mais distante e autoritário; ele, por outro lado, segue infantil e curioso, buscando algo para se entreter, inclusive, tendo ganhado um balanço de pneu de um dos prestativos trabalhadores, o qual, em momento especifico, da compreensão do menino, ‘mentiu’, afirmando ter sido medico em períodos anteriores ao do encontro marcado por sua dedicação à simples tarefa de descascar legumes, o que estranhamente o faz chorar; daí em diante, a inocência cresce, alguns discursos inflamados vão surgindo à sua cabeça sobre o que seriam os principais inimigos da Alemanha — os judeus —, até que algo de extrema importância ocorre para a narrativa; Bruno conhece Shmuel (Jack Scanlon), um menino como ele, mas de condições dadas pelo meio bastante distintas.
Imagino que ninguém, hoje, tendo acesso às informações da maneira que temos, tenha dúvida de perceber já de início que os "trabalhadores de pijama" são na verdade judeus colocados em trabalho forçado em fazendas quais são na verdade campos de concentração construídos pelos próprios à força com intenção alemã de exterminar não só eles, mas também todos aqueles que se encaixassem no bloco do Eles (Schneider, 2023) para os nazistas: ciganos, marxistas, lésbicas, gays, negros e outros grupos específicos que não os dos arianos. Leon, o menino ‘descoberto’ por Bruno no limite do que aparentemente pensava ser uma fazenda, é paralelamente apresentado como um menino judeu aprisionado no campo de concentração e forçado a trabalhar junto dos demais — o que, segundo Reiss (Talarico, 2023), não faz sentido histórico algum: crianças, sem força e utilidade para o trabalho, seriam as primeiras a serem exterminadas.
O canto de cerca, ao que parece, é refúgio para este, onde frequentemente é encontrado por Bruno. Digo “encontrado” e “descoberto” justamente pelo fato de que Shmuel é colocado como verdadeiro objeto da experiência de ‘explorador’ em que vive o menino alemão por diversão contra a monotonia. Aqui há uma verdadeira guerra de símbolos, colocando-se também o menino judeu como objeto de todas as ações, não agente; Bruno possui família completa, vive infância de luxo, com brinquedos e roupas caras, com acesso a professor particular e com única preocupação a de superar o tédio cotidiano da própria e livre existência, tendo aparente liberdade para correr onde e aonde pretende; Leon, por outro lado, veste sempre a mesma roupa suja, não parece ter brinquedos, é de feição sempre preocupada e próxima a de uma figura adulta prematuramente depressiva, em que há todo tipo de anseios e sequer liberdade para questionar em consciência estar vivendo algum tédio.
A cerca, nesse sentido, não delimita um território, mas sim condicionadores externos de vida: reproduz o aparato cultural, político e social que separa em eixos as pessoas que em fisionomia, etnia, religião e demais fatores que nos definem são estranhos a outros — estes, nesse caso, considerados “verdadeiros alemães” pelo ideal nazista da época. Um momento que deixa clara a distinção entre as tentativas de ‘ilustrar’ os dois personagens como dissemelhantes é, para mim, aquele em que Bruno rala o joelho e é delicadamente cuidado, afagado, se compararmos àquele em que Shmuel aparece sem alguns dentes e com olho roxo por ter sido surrado por nazistas, sem afago, solitário, seguindo-se sem preocupação ou cuidado alheios. Ou seja, o contraste que a narrativa constrói sobre as duas vozes e olhares de inocência não está restrito às roupagens, entre o pijama e a roupa casual, mas é encontrado também nos fatos narrativos proporcionados em linguagem fílmica quase simbolista. Percebo portanto que há uma jogada clara da narrativa quanto aos garotos na tentativa de construir uma dicotomia: o alemão luta contra a monotonia proporcianada pela facilidade e flexibilidade de sua vida, ainda que vivendo sob regime autoritário, enquanto o judeu, noutro lado da cerca ideologica que os separa, luta contra a imposição da morte e do trabalho forçado que o são colocadas com rigidez com a qual Bruno jamais poderia sonhar.
Tocando-se os simbolismos, considero o filme extremamente assertivo na dicotomia proposta pelos artifícios artísticos do gênero audiovisual encontrados, tendo se construído verdadeira relação abstêmia por parte da mãe sobre o que ocorre, enquanto nos envolvemos tal como cúmplices através dos olhares de Bruno acerca da maldade eminente a que o ‘outro’ estaria sofrendo — a maldade, talvez condicionada, do garoto surge como no 'momento das taças', em que mente e faz Shmuel apanhar, mostrando certa atenção de Bruno sobre o fato de que não poderia 'vacilar' em tal momento por se tratar de algo sério: logo, não se trata de um personagem de todo ingênuo, parece claro. Ao final, entretanto, entendo que a jogada dicotômica nos leva a perceber a fragilidade das preocupações humanas quando com liberdade reprimida, quando somente a morte e o sofrimento são certezas para o futuro, ao passo que a vagueza e a plena consciência de se estar livre nos levam à necessária monotonia e ao buscar dos anseios fúteis. As preocupações de Bruno, antes privilegiado, o levaram, ironicamente, a conhecer a verdadeira face do terror a que o jovem judeu estava submetido por obra direta de Ralf, a figura deplorável de um papai nazista, e pela abstenção de sua mãe, cumplice, mas tão agente quanto ele ao impor seus ideais sobre outros.
Por outro lado, se a intenção era mesmo manter as perspectivas centradas aos olhares, ao que era visto apenas por Bruno, vejo como certo descuido questionável nos planos em que assistimos à família do garoto alemão sofrer pela certeza de seu trágico fim. Isso dura pelo menos até a jogada de edição comparativa entre a ausência de familiares de Shmuel, no vestiário, e a representação dos pais alemães podendo consolar um ao outro pela liberdade que por eles é falsamente regida. Note: para o menino judeu, não há pessoas chorando, pois o contexto estruturado pela narrativa não o possibilita, o que parece ser destacado em sucessão de planos entre os gritos da família e o silencio ensurdecedor imposto aos judeus pela barbárie da família de Bruno.
Por fim, penso que a questão de “por que não há enfoque nesse momento também na família do garoto judeu se nos despreendemos finalmente do olhar em primeira pessoa de Bruno?” pode ser melhor interpretada se voltarmos à dicotomia que mencionei: Bruno é dado como objeto da narrativa, assim como não era visto como humano para os personagens e o que eles representavam, também não o era para a intenção do thriller enquanto constituinte da camada ficcional; não haveria quem por ele chorasse, não haveria tempo para o luto; não haveria homenagem, tampouco diferentes roupagens; somente a certeza de que seria mais um entre tantos outros àquilo, mais diretamente pela família alemã, destinados. Trata-se, portanto, de um filme que entrega bem as intenções subjetivas e conotativas artísticas de abrir margem para interpretações e não se limitar às compreensões dadas objetivamente, algo muito interessante para aqueles que gostarem de divagar em filmes aparentemente simples, mas que carreguem consigo, por debaixo das intenções emotivas de um thriller, camadas profundas a serem refletidas e que se fazem extremamente necessárias para a manutenção da arte enquanto fonte de aspiração e inspiração, seja pela catarse, seja pelo riso. Como obra de referência histórica, levando em conta as inconsistências citadas e não citadas, no entanto, faço minhas as palavras de Carlos Reiss (Talarico, 2023):
É uma produção kitsch, em seu conceito mais clássico: melodramática, sensacionalista e repleta de chavões. Conta, por isso, com a simpatia de um público mediano. Prende a atenção e parece profunda, mas não é. Como uma 'Galinha Pintadinha': chamativa, quase hipnótica, aparentemente rica, porém vazia…
¹ Professor de Língua Portuguesa e Literaturas e mestrando em Linguística pela Universidade Federal de Santa Catarina.